AVENTURA INDIANA TRADUZIDA PELO IGNORANTE
Durante a sua estada na Índia, Pitágoras aprendeu com os ginossofistas, como todos sabem, a linguagem dos animais e das plantas.
Passeando um dia por um campo à beira-mar, ouviu estas palavras: “Que desgraça a minha ter nascido relva! Mal chego a duas polegadas de altura, vem logo um monstro devorador, um animal horrível, que me aplastra com seus largos pé; a sua boca é armada com uma dupla fila de foices cortantes, com a qual me arranca, me tritura e me engole.
Os homens, chamam a esse monstro de ovelha.
Não creio que haja no mundo mais abominável criatura.”
Pitágoras avançou alguns passos e topou com uma ostra que bocejava sobre um rochedo.
O filósofo ainda não havia adotado essa admirável lei que nos proíbe comer aos animais nossos semelhantes.
Ia, pois, engolir a ostra, quando a pobre pronunciou estas comoventes palavras: “Ó Natureza! Como é feliz a relva, que é, como eu, obra tua! Ela, depois de cortada, renasce: é imortal.
E nós, miseráveis ostras, em vão somos defendidas por uma dupla couraça; e uns celerados nos comem às dúzias, ao almoço, e tudo se acaba para sempre.
Que terrível o destino de uma ostra, e como são bárbaros os homens!”
Pitágoras estremeceu; sentiu a enormidade do crime que ia praticar: debulhado em pranto, pediu perdão à ostra e colocou-a cuidadosamente sobre o seu rochedo.
De regresso à cidade, a meditar profundamente sobre essa aventura, viu aranhas que comiam moscas, andorinhas que comiam aranhas, gaviões que comiam andorinhas.
“Esse pessoal todo – dizia ele consigo – não tem a mínima filosofia”.
Ao entrar na cidade, foi Pitágoras atropelado, contundido, derrubado por uma multidão de cretinos e cretinas que corriam a gritar: “Bem feito! Bem feito! É mesmo merecido!” — “Quem? O quê? Como!” – disse Pitágoras, erguendo-se do chão.
E a gente sempre a correr, exclamando: “Ah! como não vai ser bom vê-los cozer!”
Pitágoras julgou que falavam de lentilhas ou quaisquer outros .legumes; absolutamente: tratava-se de dois pobres hindus.
“Ah, sem dúvida – pensou Pitágoras – são dois grandes filósofos que estão cansados da vida e querem renascer sob outra forma; é um prazer mudar de casa, embora se fique sempre mal alojado; de gostos não se discute.”
Avançou com a multidão até a praça pública e foi lá que viu uma grande pira acesa e, defronte a essa pira, um banco a que chamavam tribunal, e, nesse banco, uns juizes, e esses juizes seguravam todos uma cauda de vaca e usavam todos um barrete que se assemelhava perfeitamente às duas orelhas do animal que transportou Sileno, quando este veio outrora à Índia em companhia de Baco, depois de atravessarem a seco o mar Eritreu e terem feito parar o sol e a lua, como vem fielmente descrito nas Órficas.
Entre esses juizes. havia um excelente homem conhecido de Pitágoras.
O sábio da Índia explicou ao sábio de Samos em que consistia a festa que iam oferecer ao povo indiano.
“Os dois hindus” – disse ele – “não têm o mínimo desejo de ser queimados; os meus graves confrade condenaram ambos a esse suplício: um por haver dito que a substância de Xaca não é a substância de Brama; e o outro, por haver suspeitado que se podia agradar ao Ser Supremo pela simples virtude, sem que seja preciso, à hora da morte, segurar uma vaca pela cauda; pois que, dizia ele, a gente pode ser sempre virtuoso, mas nem sempre se encontra uma vaca à mão.
De tal forma se horrorizaram as boas mulheres da cidade com tão heréticas proposições que não deram descanso aos juizes enquanto estes não mandaram os dois infelizes para a fogueira.”
Pitágoras considerou que, desde a relva até o homem, há sobejos motivos de aborrecimento.
No entanto, fez que os juizes, e até mesmo os devotos, ouvissem a voz da razão; e foi essa a única vez em que tal coisa aconteceu.
Em seguida foi pregar tolerância em Crotona; mas um intolerante lhe ateou fogo à casa: e Pitágoras morreu queimado, ele que tirara dois hindus da fogueira...
Salve-se quem puder!
Conto de Voltaire,
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11 de abril de 2010
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